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[CONCEITO] – SOBERANIA – Thais Coelho de Paula Rocha

SOBERANIA segundo o Dicionário Aurélio conceitua o termo como sendo o poder supremo; autoridade moral. O conceito de “soberania” foi teorizado pelo francês Jean Bodin (1530-1596) no seu livro intitulado `Os Seis Livros da República`, no qual sustentava a seguinte tese: a Monarquia francesa é de origem hereditária; o Rei não está sujeito a condições postas pelo povo; todo o poder do Estado pertence ao Rei e não pode ser partilhado com mais ninguém (clero, nobreza ou povo). Já para Jean Jacques Rousseau (1712 -1778), soberano é o povo. Porém, cada cidadão é soberano e súdito em simultâneo, uma vez que contribui para a criação da autoridade e ao mesmo tempo está submetido a esta mesma autoridade, sendo obrigado a obedecê-la.

Na evolução histórica do conceito de soberania, há o pacto social como fator determinante de uma nova concepção desse instituto Estado. Isso se deve à força com que as novas ideias foram se desencadeando, o que deu ao poder representante, um poder absoluto sobre seus membros, representando a vontade geral e, desta forma, criando um novo entendimento por soberania. A partir do século XIX foi elaborado um conceito jurídico de soberania segundo o qual não pertence a nenhuma autoridade particular, mas ao Estado enquanto pessoa jurídica.

A noção jurídica de soberania orienta as relações entre Estados e enfatiza a necessidade de legitimação do poder político pela lei. Na Convenção de Filadélfia (1787), onde se instituiu o regime federalista, definiu-se que as unidades estatais integrantes da União se denominariam Estados-Membros, com autonomia (independência, liberdade ou autossuficiência) de direito público interno, sendo privativo da União o poder de soberania interna e internacional. A Soberania interna é compreendida como o poder supremo do Estado de impor normas aos particulares que reconhecem a autoridade estatal como a fonte legítima de direito e a Soberania externa é aquela que se manifesta perante a comunidade internacional, sendo melhor trabalhada nesse texto.

Sahid Maluf diz que o Estado é formado por três elemento: população, território e governo, ela chega a afirmar que não há estado perfeito sem soberania. Exemplo disso é a Palestina que não é Estado por não ter soberania, embora tenha território, população e reconhecimento. A soberania no prisma do Estado brasileiro é “garantida” no trecho que segue abaixo, retirado da Constituição de 1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;”

O termo em questão foi trabalhado nesse mês de aula. O professor citou o livro “A esquerda que não teme em dizer seu nome” em que ele explica autonomia como sendo um contexto dado e a soberania como contexto criado. Tal entendimento que pode ser exemplificado no caso Dandara em Belo Horizonte, em que a ocupação criou sua soberania.

A ideia de soberania, hoje em dia, é relativa. Os Estados europeus, apesar de fazerem parte da União Europeia continuam exercendo a sua soberania, porém instruídos por um ente superior, que é a União Europeia. Conservam a sua soberania porque têm ainda a possibilidade de se fazerem representar no foro internacional. Havendo uma discussão neste foro, quem fala é cada Estado, é a França, é Portugal, é a Alemanha, etc.

Pode-se aplicar a ideia de soberania externa, aprofundando no conceito, em alguns dos temas da matéria URB033, como Direito Ambiental. Por exemplo, a autora Ana Carla de Albuquerque Pacheco analisa a relação dos danos ambientais transfronteiriços com o princípio clássico da soberania estatal e a responsabilidade dos Estados em proteger o meio ambiente. Alguns danos ambientais extrapolam o conceito geopolítico de território: um problema ambiental, em um local ou território nacional, pode gerar consequências em Estados adjacentes, ou até mesmo em âmbito global. A exemplo disto, podemos mencionar a diminuição da camada de ozônio, o aquecimento global, a poluição e a devastação das florestas. Nesse contexto, critica-se a insuficiência da acepção clássica do termo soberania que já não consegue dar as respostas que as relações internacionais contemporâneas, muito mais complexas e imersas numa pluralidade de interesses e necessidades comuns, exigem (PACHECO, 2010).

O artigo 2º, § 7 da Carta na ONU declara que nenhum Estado é obrigado a se submeter a qualquer intervenção em assuntos domésticos. Nesse sentido, a ideia de soberania como poder supremo que qualifica determinado Estado a atuar independentemente e em prol de seu interesse específico e próprio, tem comprometido a proteção internacional do meio ambiente, já que o único instrumento tem sido a tentativa de conscientização de todos os atores envolvidos.

Nesse cenário, destacam-se a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972 e a Conferência sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro e apelidada de ECO-92. No entanto, por vezes, os acordos internacionais que visam à preservação ambiental (interesse global) não são homologados por contrariar interesses específicos de determinados Estados soberanos, especialmente econômicos. Na recente Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2009 (COP-15), ocorrida em Copenhague, novamente, o entrave das negociações e a dificuldade de se estabelecer um consenso internacional com vistas à preservação do meio ambiente, já que não há um poder que obrigue os envolvidos, ilustra as dificuldades quanto à consolidação, escolha e aplicação de meios de soluções de conflitos internacionais ambientais.

Nesse sentido, torna-se importante superar o paradigma da soberania existente no Estado moderno em que prevalece a centralização de competências e a individualização do poder, reafirmando-a enquanto manifestação do poder estatal limitado pelos direitos humanos, em especial, o direito ao meio ambiente equilibrado. Propõe-se, contudo, uma reavaliação do seu significado diante das mudanças históricas que sucederam ao seu surgimento a fim de assegurar direitos atualmente prioritários como a dignidade da vida humana e a proteção ambiental internacional. (PACHECO 2010).

 

Referencia:

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

Anotações nas 4 aulas de Legislação Urbana e Ambiental (URB033) Março/2016

Conceito de soberania – O que é, Definição e Significado. Disponível em: http://conceito.de/soberania#ixzz4531Z61ey

Leia mais: Conceito de soberania – O que é, Definição e Significado. Disponível em: http://conceito.de/soberania#ixzz453GogqJC

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> Acesso em: 15 jun. 2009.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Soberania

PACHECO, Ana Carla. Soberania Nacional E Meio Ambiente Global: Desafios Ao Direito Do Século XXI. Semana Jurídica USP, 2010. Disponível em: http://www.direitorp.usp.br/arquivos/noticias/sites_eventos/3_semana_juridica_2010/papers/Ana%20Carla%20de%20Albuquerque%20Pacheco.pdf

 

 

 

CRITICA, NOTÍCIAS

HEGEMONIA E CONSTITUIÇÃO

[texto original]

O futuro da esquerda não é mais difícil de prever que qualquer outro facto social. A melhor maneira de o abordar é fazer o que designo por sociologia das emergências. Consiste esta em dar atenção especial a alguns sinais do presente por ver neles tendências ou embriões do que pode vir a ser decisivo no futuro. Neste texto, dou especial atenção a um fato que, por ser incomum, pode sinalizar algo de novo e importante. Refiro-me aos pactos entre diferentes partidos de esquerda.

Os Pactos

A família das esquerdas não tem uma forte tradição de pactos. Alguns ramos desta família têm mais tradição de pactos com a direita do que com outros ramos da família. Dir-se-ia que as divergências internas na família das esquerdas são parte do seu código genético, tão constantes têm sido ao longo dos últimos duzentos anos. Por razões óbvias, as divergências têm sido mais extensas ou mais notórias em democracia. A polarização vai por vezes ao ponto de um ramo da família não reconhecer sequer que o outro ramo pertence à mesma família. Pelo contrário, em períodos de ditadura têm sido frequentes os entendimentos, ainda que terminem mal termina o período ditatorial. À luz desta história, merece uma reflexão o facto de em tempos recentes termos vindo assistir a um movimento pactista entre diferentes ramos das esquerdas em países democráticos. A Europa do Sul é um bom exemplo: a unidade em volta do Syriza na Grécia, apesar de todas as vicissitudes e dificuldades; o governo liderado pelo Partido Socialista em Portugal com o apoio do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda no rescaldo das eleições de 4 de Outubro de 2015; alguns governos autonômicos em Espanha, saídos das eleições de 2015 e, no momento em que escrevo, a discussão sobre a possibilidade de um pacto a nível nacional entre o Partido Socialista, o Podemos e outros partidos de esquerda em resultado das eleições legislativas de 6 de dezembro de 2015. Há sinais de que noutros espaços da Europa e na América Latina possam vir a surgir num futuro próximo pactos semelhantes. Duas questões se impõem. Porquê este impulso pactista em democracia? Qual a sua sustentabilidade?

A agressividade da direita é tão devastadora
que as forças de esquerda começam a perceber:
ditaduras do século XXI surgirão
como democracias de baixíssima intensidade

A primeira pergunta tem uma resposta plausível. No caso da Europa do Sul, a agressividade da direita no poder nos últimos cinco anos (tanto a nacional, como a que veste a pele das “instituições europeias”) foi tão devastadora para os direitos de cidadania e para a credibilidade do regime democrático que as forças de esquerda começam a ficar convencidas de que as novas ditaduras do século XXI vão surgir sob a forma de democracias de baixíssima intensidade. Serão ditaduras que se apresentam como ditamoles ou democraduras: a governabilidade possível ante a iminência do suposto caos nos tempos difíceis que vivemos, o resultado técnico dos imperativos do mercado e da crise que explica tudo sem precisar de ser, ela própria, explicada. O pacto resulta de uma leitura política de que o que está em causa é a sobrevivência de uma democracia digna do nome e de que as divergências sobre o que tal significa têm agora menos premência do que salvar o que a direita ainda não conseguiu destruir.

A segunda pergunta é mais difícil de responder. Como dizia Espinosa, as pessoas (e eu diria, também as sociedades) regem-se por duas emoções fundamentais: o medo e a esperança. O equilíbrio entre elas é complexo mas precisamos das duas para sobreviver. O medo domina quando as expectativas de futuro são negativas (“isto está mau mas o futuro pode ser pior”); por sua vez, a esperança domina quando as expectativas de futuro são positivas ou quando, pelo menos, o inconformismo com a suposta fatalidade das expectativas negativas é amplamente partilhado. Trinta anos depois do assalto global aos direitos dos trabalhadores; da promoção da desigualdade social e do egoísmo como máximas virtudes sociais; do saque sem precedentes dos recursos naturais e da expulsão de populações inteiras do seus territórios e da destruição ambiental que isso significa; do fomentar da guerra e do terrorismo para criar Estados falidos e tornar as sociedades indefesas perante a espoliação; da imposição mais ou menos negociada de tratados de livre comércio totalmente controlados pelos interesses das empresas multinacionais; da supremacia total do capital financeiro sobre o capital produtivo e sobre vida das pessoas e das comunidades – depois de tudo isto, combinado com a defesa hipócrita da democracia liberal, é plausível concluir que o neoliberalismo é uma máquina imensa de produção de expectativas negativas para que as classes populares não saibam as verdadeiras razões do seu sofrimento, se conformem com o pouco que ainda têm e sejam paralisadas pelo pavor de o perder.

Constituição e Hegemonia

O movimento pactista no interior das esquerdas é o produto de um tempo, o nosso, de predomínio absoluto do medo sobre a esperança. Significará isto que os governos saídos dos pactos serão vítimas do seu êxito? O êxito dos governos pactuados à esquerda irá traduzir-se na atenuação do medo e no devolver de alguma esperança às classes populares, ao mostrar, por via de uma governação pragmática e inteligente, que o direito a ter direitos é uma conquista civilizacional irreversível. Será que, no momento em que voltar a luzir a esperança, as divergências voltarão à superfície e os pactos serão deitados para o lixo? Se tal acontecer, isso será fatal para as classes populares, que rapidamente voltarão ao silenciado desalento perante um fatalismo cruel, tão violento para as grandes maiorias quanto benévolo para as pequeníssimas minorias. Mas será também fatal para as esquerdas no seu conjunto, porque ficará demonstrado durante algumas décadas que as esquerdas são boas para remendar o passado mas não para construir o futuro. Para que tal não aconteça, dois tipos de medidas têm de ser levadas a cabo durante a vigência dos pactos. Duas medidas que não se impõem pela urgência da governação corrente e que, por isso, têm de resultar de vontade política bem determinada. Chamo às duas medidas: Constituição e hegemonia.

Primeira tarefa: reformas que ampliem a democracia,
acabem com o monopólio dos partidos,
garantam direitos sociais e nos preparem para futuros embates
contra o projeto elitista da ditamole

A Constituição é o conjunto de reformas constitucionais ou infraconstitucionais que reestruturam o sistema político e as instituições de maneira a prepará-los para possíveis embates com a ditamole e o projeto de democracia de baixíssima intensidade que ela traz consigo. Consoante os países, as reformas serão diferentes, como serão diferentes os mecanismos utilizados. Se nalguns casos é possível reformar a Constituição com base nos parlamentos, noutros será necessário convocar Assembleias Constituintes originárias, dado que os parlamentos seriam o obstáculo maior a qualquer reforma constitucional. Pode também acontecer que, num certo contexto, a “reforma” mais importante seja a defesa ativa da Constituição existente mediante uma renovada pedagogia constitucional em todas as áreas de governação. Mas haverá algo comum a todas as reformas: tornar o sistema eleitoral mais representativo e mais transparente; reforçar a democracia representativa com a democracia participativa.

Os mais influentes teóricos liberais da democracia representativa reconheceram (e recomendaram) a coexistência ambígua entre duas ideias (contraditórias) que garantem a estabilidade democrática: por um lado, a crença dos cidadãos na sua capacidade e competência para intervir e participar ativamente na política; por outro, um exercício passivo dessa competência e dessa capacidade mediante a confiança nas elites governantes. Em tempos recentes, e como mostram os protestos que abalaram muitos países a partir de 2011, a confiança nas elites tem vindo a deteriorar-se sem que, no entanto, o sistema político (pelo seu desenho ou pela sua prática) permita aos cidadãos recuperar a sua capacidade e competência para intervir ativamente na vida política. Sistemas eleitorais enviesados, partidocracia, corrupção, crises financeiras manipuladas – eis algumas das razões para a dupla crise de representação (“não nos representam”) e de participação (“não merece a pena votar, são todos iguais e nenhum cumpre o que promete”). As reformas constitucionais visarão um duplo objetivo: tornar a democracia representativa mais representativa; complementar a democracia representativa com a democracia participativa. De tais reformas resultará que a formação da agenda política e o controlo do desempenho das políticas públicas deixam de ser um monopólio dos partidos e passam a ser partilhados pelos partidos e por cidadãos independentes organizados democraticamente para o efeito.

O segundo conjunto de reformas é o que designo por hegemonia. Hegemonia é o conjunto de ideias sobre a sociedade e interpretações do mundo e da vida que, por serem altamente partilhadas, inclusivamente pelos grupos sociais que são prejudicados por elas, permitem que as elites políticas, ao apelarem para tais ideias e interpretações, governem mais por consenso do que por coerção, mesmo quando governam contra os interesses objetivos de grupos sociais maioritários. A ideia de que os pobres são pobres por culpa própria é hegemônica quando é defendida, não apenas pelos ricos, mas também pelos pobres e pelas classes populares em geral. Nesse caso são, por exemplo, menores os custos políticos das medidas que visam eliminar ou restringir drasticamente o rendimento social de inserção.

As aprendizagens globais

A luta pela hegemonia das ideias de sociedade que sustentam o pacto entre as esquerdas é fundamental para a sobrevivência e consistência desse pacto. Essa luta trava-se na educação formal e na promoção da educação popular, nos mídia, no apoio aos mídia alternativos, na investigação científica, na transformação curricular das universidades, nas redes sociais, na atividade cultural, nas organizações e movimentos sociais, na opinião pública e na opinião publicada. Através dela, constroem-se novos sentidos e critérios de avaliação da vida social e da ação política ( a imoralidade do privilégio, da concentração da riqueza e da discriminação racial e sexual; a promoção da solidariedade, dos bens comuns e da diversidade cultural social e econômica; a defesa da soberania e da coerência das alianças políticas; a proteção da natureza) que tornam mais difícil a contra-reforma dos ramos reacionários da direita, os primeiros a irromper num momento de fragilidade do pacto. Para que esta luta tenha êxito é preciso impulsionar políticas que, a olho nu, são menos urgentes e menos compensadoras. Se tal não ocorrer, a esperança não sobreviverá ao medo.

Na América Latina, governos de esquerda não enfrentaram
nem questão da Constituição, nem da hegemonia.
No caso do Brasil, isso é ainda mais dramático
e ameaça todos os avanços da última década

Se algo se pode afirmar com alguma certeza sobre as dificuldades por que estão a passar as forças progressistas na América Latina é que elas assentam no facto de os seus governos não terem enfrentado nem a questão da Constituição nem a questão da hegemonia. No caso do Brasil, este fato é particularmente dramático. Ele explica em parte que os enormes avanços sociais dos governos da era Lula sejam agora tão facilmente reduzidos a meros expedientes populistas e oportunistas, inclusivamente por parte daqueles que deles beneficiaram. Explica também que os muitos erros que cometeram ( foram muitos, a começar pela desistência da reforma política e da regulação dos mídia, e alguns erros deixam feridas abertas em grupos sociais importantes, tão diversos quanto os camponeses sem terra nem reforma agrária, os jovens negros vítimas do racismo, os povos indígenas ilegalmente expulsos dos seus territórios ancestrais, povos indígenas e quilombolas com reservas homologadas mas engavetadas, militarização das periferias das grandes cidades, populações rurais envenenadas por agrotóxicos, etc) não sejam considerados erros, passem em claro e até sejam convertidos em virtudes políticas ou, pelo menos, sejam aceites como consequências inevitáveis de uma governação realista e desenvolvimentista.

As tarefas não cumpridas da Constituição e da hegemonia explicam ainda que a condenação da tentação capitalista por parte dos governos de esquerda se centre na corrupção e, portanto, na imoralidade e na ilegalidade do capitalismo e não na injustiça sistemática de um sistema de dominação que se pode realizar em perfeito cumprimento da legalidade e da moralidade capitalistas.

A análise das consequências da não resolução das questões da Constituição e da hegemonia é relevante para prever e prevenir o que se pode passar nas próximas décadas, não só na América Latina, como também na Europa e noutras regiões do mundo. Entre as esquerdas latino-americanas e da Europa do Sul tem havido nos últimos vinte anos canais de comunicação importantes que estão ainda por analisar em todas as suas dimensões. Desde o início do orçamento participativo em Porto Alegre (1989), várias organizações de esquerda na Europa, Canadá e Índia (são estas as de que tenho conhecimento) começaram a dar muita atenção às inovações políticas que emergiam no campo das esquerdas em vários países da América Latina. A partir do final da década de 1990, com a intensificação das lutas sociais, a subida ao poder de governos progressistas e as lutas por Assembleias Constituintes, sobretudo no Equador e na Bolívia, tornou-se claro que uma profunda renovação da esquerda estava em curso e da qual havia muito que aprender.

Os traços principais dessa renovação eram os seguintes: a democracia participativa articulada com a democracia representativa, uma articulação de que ambas saiam fortalecidas; o intenso protagonismo de movimentos sociais de que o Fórum Social Mundial de 2001 foi uma mostra eloquente; uma nova relação entre partidos e movimentos sociais; a entrada saliente na vida política de grupos sociais até então considerados residuais, nomeadamente camponeses sem terra, povos indígenas e povos afro-descendentes; a celebração da diversidade cultural, o reconhecimento do caráter plurinacional dos países e o propósito de enfrentar as insidiosas heranças coloniais sempre presentes. Este elenco é suficiente para evidenciar o quanto as duas lutas a que me tenho estado a referir (a Constituição e a hegemonia) estavam presentes neste vasto movimento que parecia refundar para sempre o pensamento e a prática de esquerda, não só na América Latina, como em todo o mundo.

A crise financeira e política, sobretudo a partir de 2011, e o movimento dos indignados foram os detonadores de novas emergências políticas de esquerda na Europa do Sul em que as lições da América Latina estavam bem presentes, sobretudo a nova relação partido-movimento, a nova articulação entre democracia representativa e democracia participativa, a reforma constitucional e, no caso da Espanha, a questão da plurinacionalidade. O partido espanhol Podemos representa melhor do que qualquer outro esta aprendizagem, ainda que os seus dirigentes tenham estado desde a primeira hora bem conscientes das diferenças substanciais entre o contexto político e geopolítico europeu e o latino-americano.

As esquerdas europeias aprenderam com as muitas inovações
das esquerdas latino-americanas. Mas estas “esqueceram”
suas próprias criações e caíram nas armadilhas
da velha política, onde são facilmente batidas

O modo como essas aprendizagens se vão plasmar no novo ciclo político que está a emergir na Europa do Sul é, por agora, uma incógnita. mas desde já é possível especular o seguinte. Se é verdade que as esquerdas europeias aprenderam com as muitas inovações das esquerdas latino-americanas, não é menos verdade (e trágico) que estas se “esqueceram” das suas próprias inovações e que, de uma ou de outra forma, caíram nas armadilhas da velha política onde as forças de direita facilmente mostram a sua superioridade dada a longa experiência histórica acumulada.

Se as linhas de comunicação se mantêm nos dias de hoje, e sempre salvaguardando a diferenças dos contextos, talvez seja tempo de as esquerdas latino-americanas aprenderem com as inovações que estão a emergir entre as esquerdas da Europa do Sul. Entre elas saliento as seguintes: manter viva a democracia participativa dentro dos próprios partidos de esquerda como condição prévia à sua adoção no sistema político nacional em articulação com a democracia representativa; pactos entre forças de esquerda (não necessariamente apenas partidos) e nunca com forças de direita; pactos pragmáticos não clientelistas (não se discutem pessoas ou postos de governo mas políticas e medidas de governação), nem de rendição (articulando linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas com a noção de prioridades, ou, como se dizia dantes, distinguindo as lutas primárias das secundárias); insistência na reforma constitucional para blindar os direitos sociais e tornar o sistema político mais transparente, mais próximo e mais dependente de decisões cidadãs sem ter de esperar por eleições de quatro em quatro anos (reforço do referendum); e, no caso espanhol, tratar democraticamente a questão da plurinacionalidade.

A máquina fatal do neoliberalismo continua a produzir medo em larga escala e, sempre que falta matéria prima, ceifa a esperança que pode encontrar nos recessos mais recônditos da vida política, social das classes populares, tritura-a, processa-a e transforma-a em medo do medo. As esquerdas são a areia que pode emperrar essa engrenagem majestática de modo a abrir as brechas por onde a sociologia das emergências fará o seu trabalho de formular e amplificar as tendências, os “ainda não”, que apontam para um futuro digno para as grandes maiorias. Para isso, é preciso que as esquerdas saibam ter medo sem ter medo do medo. Saibam furtar rebentos de esperança à trituração neoliberal e plantá-los em terrenos férteis onde cada vez mais cidadãos sintam que podem viver bem, protegidos, tanto do inferno do caos iminente, como do paraíso das sirenes do consumo obsessivo. Para que isto aconteça, a condição mínima é que as esquerdas permaneçam firmes nas duas lutas fundamentais, a Constituição e a hegemonia.